"É necessário acreditar que o sonho é possível e que você, truta, é imbatível...



Essa carta vai dar o que falar. Tô até vendo. Vamos lá... Coragem! Bota esse rap do Racionais e sente a letra pra você entender melhor essa carta.


Ingressei na Universidade de Brasília em 2004, como mencionei em uma das cartas. Cursei Serviço Social na graduação, portanto, sou Assistente Social de formação. Me formei em 2008 e em 2009 ingressei no mestrado acadêmico, na Psicologia Clínica e Cultura da UnB. Concluí o mestrado em 2011. Muita história ligada à socioeducação desde então. E muito antes.

Como contei em cartas passadas, morei a maior parte da minha vida em Planaltina. Cidade Satélite, hoje, Região Administrativa do DF. Durante alguns anos, morei no Jardim Roriz, um bairro marcado pela violência e famoso nas “guerras” da cidade, especialmente com o pombal. Quando minha mãe se mudou para o Roriz, lá não tinha nada. A água vinha do chafariz. Nossa casa não tinha muro. Morávamos numa casa de esquina, de frente para o Setor de Oficinas. Aconteceu muita coisa lá. Esquina. Perifa. Sabe como é. Em frente à nossa casa tinha um bar. O filho do dono do bar foi preso algumas vezes por tráfico de drogas. A nossa vizinha de lado, Dona Ângela, morava em um barraco de madeirite com poucos cômodos. Tinha 06 filhos, ela e Seu Manoel, o marido. Meu irmão João e eu vivíamos lá. Nossa casa, perto da rua, era muito boa. Porque era de alvenaria. Mas era bem simples na verdade. Minha mãe a construiu bem aos poucos. Contamos com mutirão de família. Um tio ajuda no telhado, o outro faz buraco, minha mãe faz cerca, arruma isso aqui, aquilo ali e, pronto, temos uma casa. Eu estudava na Escola Classe 11, onde minha mãe ocupava a função de merendeira, na época. Ela fazia a comida da galera. E era uma comida top. Porque tô contando isso? Porque há pouco tempo entendi que a vida me preparou para trabalhar na socioeducação. Acompanha.

Eu vi muitos amigos largarem a escola. Vi gente que tirava nota boa morrer. Vi vizinhos sendo presos. Vi famílias sofrendo com todo o tipo de violência. Uma vez, me lembro de João, minha mãe e eu irmos para debaixo da cama à noite, pois tava tendo tiro lá na rua. Muitas imagens fortes de coisas que vivemos lá. Muitas.

Aos 10 anos eu fui morar com minha avó Paulina e a Tia Irene, na Vila Buritis. Um bairro mais calmo, mais distante da violência do Roriz e Pombal. Isso foi um fator protetivo na minha história. Pára aqui. Segura essa história.

Na UnB, ainda na graduação, eu fiz parte de um grupo de pesquisa chamado VIOLES. Fizemos um trabalho para a Fiocruz e Escola de Magistrados do Ministério Público para averiguar se existia um grupo de extermínio que matava adolescentes egressos do sistema socioeducativo. Na época, conheci a Adelaide, assistente social do TJDFT, atuante na antiga Seção de Medidas Socioeducativas (SEMSE) da Vara da Infância e Juventude do DF. Após a pesquisa, Adelaide contou que seria aberta vaga para estágio remunerado na SEMSE. Eu precisava de grana, curtia demais a temática, pois me identificava com ela. Fui lá, fiz a seleção, passei e estagiei lá por quase dois anos, até me formar. Então eu me apaixonei pela temática. Me identificava em várias questões. Vim da Perifa. Nunca infracionei quando adolescente, mas vi de perto muitas coisas acontecerem. Então rolava uma empatia forte pela mulecada.

Fiz monografia na área. Fiz mestrado na área. Fiz vários cursos, participei de vários congressos, seminários e eventos ligados à socioeducação. Escrevi alguns artigos, publicados, sobre o tema. Atuo e milito na causa desde então.

Em 2009 ingressei no GDF, como servidora pública. Em fevereiro faz 09 anos que componho o quadro de servidores do DF. Nesse tempo, passei pela Assistência Social, atuando no CRAS, na gestão como técnica. Em 2011 assumi um cargo na Unidade de Internação de Planaltina, como chefe do Núcleo Psicossocial. Pensa na treta. Durei 08 meses. Depois fiquei por mais quase 02 anos como assessora da direção da Unidade. Trabalhamos pra caramba. Ao sair da gestão, resolvi ir para o meio aberto, onde os adolescentes cumprem medidas socioeducativas em liberdade. Em suma, são aqueles adolescentes que cometeram atos infracionais de leve potencial ofensivo (furto, roubo, tentativas, porte de arma, uso e porte de droga, lesão corporal, etc.). Teoricamente são aqueles adolescentes que estão começando o envolvimento infracional. Portanto, temos uma grande possibilidade de atuar para que não enredem na trajetória infracional. Eu acredito no meio aberto. Na internação não. Goffman e Foucault já falavam. Instituição total, prisão, as relações de micro poder. A desfiguração do ser. Por isso não volto pra internação. Não sei trabalhar sem fé e sem paixão.

Eu adoeci algumas vezes nesse sistema. Mas, quem me conhece, sabe que nunca desisti. Toda vez buscava um novo fôlego nas férias e voltava cheia das idéias. Sou otimista, sonhadora pra caramba. Em abril de 2017 tive diagnóstico de depressão e passei 60 dias afastada do trabalho. Foi horrível. Mas foi importante reconhecer que eu precisava me cuidar mais para poder “cuidar” melhor. Quando retornei ao trabalho, entendi que precisava mudar minha forma de atuar. Em geral, as pessoas tendem a ficar frias, a se sensibilizar menos. Eu adoecia porque nunca consegui ser assim. Nem nunca quis. Pelo contrário. E aí eu saquei o quanto o sistema é adoecido. O povo fica apático. Para de se importar. Bota a culpa sempre na mulecada. No sistema. Nas ausências e bota ausência. E faz um trabalho bem mais ou menos.

Aí vem um conceito do Pedro Demo, sociólogo, que traz o quanto no Brasil fazemos uma política pobre para o pobre. A gente faz qualquer coisa. E tudo bem. Só que não. Não está tudo bem. Não quero fazer um trabalho mais ou menos e ganhar meu salário no final do mês e fingir que está tudo bem. Eu me recuso a fazer isso. E, então, Luiza e eu passamos a ousar. Focamos no trabalho grupal. No contato ainda mais empático. Quebramos algumas “falsas verdades” do limite profissional. A gente caiu para dentro da comunidade. Fez parceira como povo das batalhas de rima. A gente fala pelo zap com a galera. Troca idéia no Messenger nas madrugadas. Abraça. Dá bronca. Sorri. Chora junto. Brinca. Briga.

Aí entra o Serviço Social. Minha boca nervosa e meu ascendente em Áries me fazem falar mais do que devo, às vezes. Espero que não suspendam minha licença para atuação profissional, hehehe. Algumas pessoas têm dito por aí que eu sou uma assistente social holística. Cara, eu me orgulho desse estereótipo. De verdade. Só acho palha as pessoas, em especial as da Academia, com seus saberes “superiores” utilizarem essas nomenclaturas para desqualificar o nosso trabalho. No serviço social da UnB a linha é marxista. Bem doutrinária. Sou fã do Karl Marx, adoro a dialética, a análise da sociedade de classes, a concepção da exploração da força de trabalho, a crítica ao capitalismo, entre tantas outras contribuições que Marx e sua galera trouxeram. Mas Marx é de um tempo passado e a gente precisa reconhecer que o mundo mudou muito e que, a ciência, não é absoluta. Inclusive esse é um dos princípios básicos da ciência. A crítica. O questionamento. A impermanência. Ainda mais nas ciências humanas, onde lidamos com subjetividade e buscamos não enquadrar as pessoas em blocos de análise fixos. Achei a minha formação falha no sentido do preparo para lidar com a realidade concreta de quem atende diretamente ao público. Como pesquisadora, como analista de políticas sociais, acho que foi ótima. Mas para o vamo ver do dia-a-dia faltou muita coisa. Não dá para falar de revolução com alguém que chega aos prantos na sua frente dizendo que está passando fome e foi violentada sexualmente pelo marido. Nessas horas, a gente precisa saber fazer uma acolhida empática. Entender o que é uma catarse. Saber fazer uma intervenção em crise. Subjetividade não é coisa exclusiva da psicologia. E o Serviço Social não existe só para fazer encaminhamentos institucionais e pareceres socioeconômicos. A gente lida com o enfrentamento da questão social. E são pessoas que sofrem as conseqüências de tal questão. E são essas pessoas que atendemos. E não a questão social. Sacou? É fundamental ter a noção do macro, do sistema. Da estrutura. Mas é preciso mais do que isso para atuar na labuta diária.

Por isso fui fazer mestrado na psicologia. Queria mais recursos para minha atuação enquanto assistente social. Aprendi sobre grupos focais, narrativas, metodologia de história de vida, genograma, catarse, entre outras mil coisas. Aprendi a fazer uma escuta mais qualificada, portanto, mais empática.

Depois disso veio um breve mergulho na Justiça Restaurativa, Comunicação Não-Violenta. Aprendi a mediar conflitos, fazer pedidos empáticos. A olhar para o ser humano como ser humano. Humano igual a mim. Não como o adolescente infrator. É meio óbvio isso. Mas como diz minha amiga Joelma, nem sempre o óbvio é óbvio. E o sistema é frio para cacete. A gente lida com o sofrimento humano diariamente. Não é nem um pouco fácil. E o povo adoece mesmo. É muito abandono de todo lado. Mas nós somos os adultos. Os profissionais. Os servidores públicos. Temos uma responsabilidade grande aí na busca por melhorar nossos serviços.

Em 2016 fiz um curso chamado Ecossocioeducação, ministrado pela minha amiga Mari Behr. Ela foi fazer mestrado na educação. Trouxe elementos da ecologia humana. Da pedagogia da cooperação. Um olhar bem sensível. Me identifiquei totalmente. E aí tudo começou a mudar de novo.

Desde então começamos uma revolução na UAMA Paranoá. A equipe é altamente revolucionária. Um monte de TDAH. A gente mudou a estrutura física da Unidade. Mudamos a nossa forma de atender. Estamos construindo um programa de atendimento. Focamos no coletivo. Temos muitos grupos. Muita coisa legal rolando. Uma unidade feita para a mulecada e pela mulecada. Temos muito que caminhar, sempre. Mas precisamos reconhecer os avanços. A unidade tem outra cara hoje. A cara da juventude. Não a nossa. Afinal, trabalhamos para eles. Com eles. Por eles. E por todos nós.

Aprendi numa formação com a Cinthia Bisinoto, que inclusive admiro demais, sobre a profecia auto-realizadora, um conceito bem trabalhado pela psicologia. A idéia é que de tanto a gente falar uma coisa, ela acaba acontecendo. E o que os meninos vivem é justamente isso. Eles nascem, crescem e, infelizmente, alguns morrem, escutando TODOS OS DIAS que são o problema da sociedade. Que não querem nada da vida. Que são vagabundos. Que deviam morrer. Que são bandidos. E, a meleca toda, é que eles acabam acreditando nisso e muitas vezes a profecia acontece. Mas aí vem a lei da abundância, o lado de buscar a beleza inerente em cada ser e pessoa. Para mim, eles são sobreviventes. Guerreiros. Infracionaram e, por esse motivo, de alguma forma foram reconhecidos. A gente vive num sistema que vende a idéia de que felicidade está diretamente relacionada à dinheiro. Que você é o que você tem. Mas, contraditoriamente, é uma sociedade altamente injusta e desigual na partilha dos bens de consumo e meios de produção. Logo, se eu não tenho grana, não sou nada. Foda! 

Então a gente trabalha no empoderamento da mulecada. Autonomia. Responsabilidade pelos seus atos. Reconhecimento das potencialidades. Re-descoberta dos sonhos. Ressignificação das histórias de vida. Das trajetórias. Das dores. Entender a dificuldade como fermento. Já dizia Jeconias. 

Vamos dar o golpe no sistema. Fazer à profecia auto realizadora ir por água abaixo. Calar a boca da descrença. Cantar na batalha de rima. Botar na letra a dor. Botar na rima a treta. Bota no papel. Solta a voz. Deixa a palavra sair. E aí, talvez, ela não precise se concretizar. Bota pra fora essa revolta. Volta pro seu centro. Reconheça seu eu superior. A Core Energetics tem me ensinado muito. Meu mais novo e audacioso sonho? Contribuir para que cada adolescente e família que passa pela minha vida reconheça seu eu superior. Se conecte com o divino que habita dentro de si. Aí, mano, não vai ter sistema que segure. É revolução na certa. Bora lá mulecada. Ergue a cabeça. Encara a vida. Bora revolucionar e ser feliz. Vamos calar a boca da hipocrisia.

Gostou? Compartilha! Gostou? Para de defender a redução da maioria penal. Gostou? Vamo lutar juntos por mais orçamento. Gostou? Vem contribuir com a gente. 

A real? Sou eu que aprendo com eles todos os dias. A humildade. A luta. A correria. A sobrevivência. A fé. As trocas genuínas.

São nas pequenas coisas que vejo o resultado desse trabalho. É no muleque que chega de cabeça baixa e cara amarrada e, aos poucos, passa a sorrir, levanta a cara. Que liga pra cobrar nosso trabalho. Reivindica a falta do lanche. Que te olha com olhar de gratidão. De quem acredita nele. Que começa a trabalhar e com a grana paga terapia individual. Que tem filho e volta pra saber como a gente tá. Pra levar o filho pra gente acontecer. Aquela mãe que manda msg pra agradecer.

São adolescentes gente. E porque infracionaram e são pobres, o povo acha que eles têm que fazer coisa estúpida. Que tem que ter uma responsabilidade maior. São adolescentes. E isso já é um mega desafio. 

E pra galera da academia, pros que se acham melhores, desçam do patamar. Venham lavar banheiro na Funarte com a gente. Entrar em boca de fumo pra convocar adolescente pra cumprir medida. Acolher mãe enlutada por perder o filho pra violência. Ir em funeral. Ir reconhecer corpo no IML. Venham ser um pouco holísticos, e menos teóricos. Venham viver a práxis. 

E pra vocês, mulecada, bora revolucionar. O mundo é nosso! De todos nós. Vamos ocupar os espacos. Mostrar nossa educação. A malandragem da perifa. Vai, ergue a cabeça, bate no peito e diz: "vem vida, eu não tenho medo de você". E bora ser feliz! Tamo junto! A perifa é o centro da Mandala.

E pra fechar música do GOG, poeta do DF e parceiro. E umas fotos da UAMA.








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